quarta-feira, 27 de junho de 2012

Careca to be

Me desculpe me despedir assim por meio de carta, mas eu não sei como iria reagir se te visse na minha frente. Estamos a tanto tempo juntos que não consigo me conformar com a nossa eminente despedida. Não me entenda mal querida, foram doces nossos anos, mas ambos sabemos que o tempo tem corrido rápido demais pra sustentar nossa situação.
Semana passada nosso amigo Cláudio proclamou nossa sentença: você está de partida e eu ficarei só, coçando o que resta e a lembrança lustrosa que ficará no seu lugar. Adeus para sempre às tesouras e maquininhas de raspar.
Mesmo agora eu já procuro evitar as lâmpadas pra não ser vítima da sua ausência e do reflexo. Até já comecei uma coleção de chapéus; ainda não usei, não tive coragem, não quero me sentir um traidor. Quero mostrar você pro mundo, cada fio, pra que o mundo saiba que eu não nasci careca. Bem, eu nasci, mas esse não é o ponto. Quero que todos possam lembrar de nós dois juntos, você brilhando ao sol toda sedosa ondulando conforme eu caminho. Você rodopiando enquanto eu toco minha guitarra imaginária. Tremendos parceiros. Amigos de infância.
Querida, espero que você me perdoe por nossos embaraços, e também por aqueles todos perdidos nos amassos. Vingarei sua queda, cabeleira minha.
E agora com este penteado derradeiro, eu levo a cabeça erguida, caminhando com a dignidade que me resta até que chegue (não) finalmente o fim. 
Com amor eu me despeço, querida. Em breve nós estaremos juntos.

Do sempre seu,
Eurípedes Donizete

terça-feira, 26 de junho de 2012

Dia 3

Ao vasculhar, empurro caixas, afasto as teias, desmonto e esbarro em pilhas do que já foi um dia meu destino. Sento num canto pra lembrar de cartas antigas, amigos que como eu se afastaram tanto quanto puderam daquele caminho interditado.
Antes de fechar a porta, um caco de vidro enfiado no pé - Não vá embora, a gente ainda pode dar certo...
Sabe o que é, Passado... não é nada com você, o problema é comigo. Mas a gente se fala.

Digerir

Ato de separar o que presta do bolo engolido de conversas, julgamentos e opiniões, daquilo que só serve pra cocô.

segunda-feira, 11 de junho de 2012

Dia 2


Num canto empoeirado, um bolo de cabelo e pico-pico, junto com alguma coisa que se mexia meio mole.
Dei um chutinho pra confirmar, então me abaixei e mandei ver na assoprada.
Era meu, parecia; só que ainda era muito difícil de aceitar. 
Mas era ele sim, encaixava; e no que eu me lembro ele fazia um bom serviço batendo aqui no peito.
Mais uma assopradinha, esfreguei na blusa e mandei pra dentro.
Já era hora.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Dia 1


Quando acordei estava estirada no chão. Dei uma conferida. Não, não estava morta.
Por algum motivo tinha ido dormir no lugar errado.
Tudo em volta era bagunça e esquecimento, como se interditado três anos atrás por um tiro que saiu pela culatra.
Quanto tempo eu tinha passado aqui, eu não sabia.
Ao andar pela casa, pisava e me lembrava um pouco, até que um punhado de cacos me trouxe à tona.
E como se ele dissesse meu nome eu o deixei cair no chão e fui procurar por mais.
Com sede do passado, desesperadamente eu bebia. 
Eu me lembro, eu me lembro.

quinta-feira, 5 de abril de 2012

Tiroteio

 Eu lembro de ter passado dias escolhendo músicas. 
Lembro de ouvir as que eu já achava, as que eu tinha esquecido e aquelas que meio mundo me indicou.
Lembro de ter ficado orgulhosa depois de selecionar. De curtir cada uma enquanto tocava.
Hoje quando escuto as mesmas músicas continuo achando que selecionaria todas tudo de novo. Daria dois (e vários) tiros com a mesma bala. 
Mesmo que a gente tenha sambado sambado e sambado em cima do que aquilo significava. 
Mesmo que o que sobrou do nosso momento seja só o orgulho de uma boa lista de músicas.
Bala boa é reciclável. Bam. Bam. Bam.

terça-feira, 3 de abril de 2012

Na cartomante - 5

Eu vejo você chorando a saudade daqueles que você afastou mais vezes do que poderia ser perdoado. Gritando e negando a culpa a distância e a solidão.
Vejo você tentar sorrir diante da vida que a vida te trouxe no fim das contas, desafiando a sua impaciência diante daquilo que você ainda achava que podia ser alterado.
Só quando seus olhos descerem ao nível onde você guardou todos os outros, você vai se dar conta de quantos estavam por perto enquanto você achava que não.
- Minha senhora, mas que absurdo. Você não tem nada melhor pra me falar?
- Só quando você tiver coisa melhor a oferecer, minha menina...

sexta-feira, 30 de março de 2012

Cor sim, cor não

A ação foi crescer e a reação é que agora cada um faz por seguir o seu caminho. 
Entre os percalços, a gente se encontra. E no espaço entre as boas novidades, nunca sei direito quem é você, nem o que te habita.
Onde afeto e a falta são vizinhos de porta, já não sei dizer se fingimos que somos juntos, ou se insistimos em fingir que não somos. 
Entre as opções, eu me importo e não, e o tempo passa. E também não. 

quinta-feira, 29 de março de 2012

Boniteza gera pobreza

Entre os buzinaços, eu caminhava morena e linda debaixo do sol. Andando e seduzindo.
A alegria faz uma diferença considerável no visu, deixa mais bonita, mais magra e até mais alta. Pena que deixa a gente mais pobre tambem.
Que quando a gente liga o koleston diante das vitrines, não há porque eu mereço que seja suficiente pra tanta belezura.
(vocês aceitam visa?)

sexta-feira, 23 de março de 2012

Bum

O velho estava sentado no meio fio na frente do posto comendo pipocas de um pacote rosa.
Era hora do almoço, mas ele estava sentado ali sozinho, ele e suas pipocas.
Sem falar nada ele amassou o saco cor de rosa já vazio e enfiou no canto do canteiro do posto e levantou.
Parou e olhou o saco que se desamassava de um jeito bonito, remexeu no bolso e tirou o maço, acendeu um cigarro e sentou de novo.
A bituca ele jogou no chão e pisou em cima, não era idiota.
Ele sabia que tinha mais no mundo do que ele, o saco rosa e a bituca. 
As coisas correm risco o tempo todo de explodir, dai bum.

quinta-feira, 22 de março de 2012

Tá no dicionário

Problema: marmanjo(a) de boa idade e boa aparência, dotados de talentos desejáveis e indecentes, frequentemente providos de aliança, colar de meio coração ou enrosco.

quarta-feira, 21 de março de 2012

Pós Guerra

Na manhã pós TPM, o cenário é de entristecer.  
Você levanta farejando pra entender direito o que, onde e como aconteceu e principalmente, onde você estava enquanto isso.
Sua cara no espelho é o retrato do pós guerra. Os cabelos, quanta diferença.
Na gaveta de baixo o último chocolatinho. Aquele separado pra hora da última esperança.
Você estende a mão na direção dele - não, ainda não é hora - e fecha a gaveta.
TPM foi embora, agora é hora de juntar todos os baldes que você chutou durante esses dias.
Tirar o pé da jaca. Botar o banho na lista de prioridades.
O eterno recomeço dessa vida. Eis o verdadeiro significado.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Carta pra você (Batista e seus novos óculos)

Minha querida irmã,
Provavelmente esta carta vem te trazer algum transtorno. Sei que discutimos incansavelmente sobre esse assunto, e também sei que não colaborei em nada quando você precisou da minha companhia para fazer os exames. 
Eu vim pra reconhecer meu erro. Me perdoe irmã, eu estava errado. 
Se eu acabei falando o que eu falei, foi porque eu não via a verdade que estava a um metro da minha cara.
Mas outro dia, no churrasco na casa do padrinho, eu me dei conta do que você estava tentando me dizer há tanto tempo. Você precisa de mim, maninha. Por favor, faça o que for possível para remarcar sua cirurgia que eu farei o que for preciso para te ajudar a se livrar dessas pelancas. Me perdoe por te encher de falsas esperanças, mas isto está tão ruim quanto parece. Mas resolver isso agora é a minha prioridade. E que Deus nos ajude e que Nossa Senhora Santíssima olhe por nós.
Do seu irmão, 
Batista

quarta-feira, 14 de março de 2012

Muito amor

A amiga desembesta a cantarolar.
- Que isso amiga, tá feliz?
- Ai, Milionário e José Rico, sou apaixonada.
- Juro que se no caso de eu vir a casar com alguém que goste de Milionário e José Rico, Teodoro e Sampaio ou Roberto Carlos, eu peço divórcio na hora.
- Dai você manda ele direto lá pra casa que eu cuido direitinho do sujeito! Milionário e José Rico, sou apaixonada. Teodoro e Sampaio, sou apaixonada. Amado Batista, sou apaixonada! Ivete Sangalo, sou apaixonada. José Mayer também, sou apaixonada.
- Ué, o José Mayer é cantor agora?
- Não né, se ele cantasse daí que não teria sossego. Jura que você não gosta de Roberto Carlos? Sou apaixonada!

terça-feira, 13 de março de 2012

Carta pra você

Devia fazer bem uns vinte anos que não sabia de você, até que te vi outro dia na rua. 
Eu até achei bem estranho ver você caminhando. Você que mal sabia como se mexer depois de descer do carro. 
Eu lembro daquele carrão que você comprou e a babação toda que veio junto. 
Conta aí qual foi, você ficou pobre ou ficou gordo?
Aqui entre nós, eu dei uma boa engordada neste tempo, mas você tá bonito cara. Eu só tô achando estranho. Você não pode ter esse corpitho e aquele carrão. Com a nossa idade ou você tem um carrão e a barriga adequada pra que ele carregue, ou o corpão. Corpão anda de bicicleta, ergométrica pode ser, mas carrão não, nem vem.
E a filharada, posso apostar que você já tem até neto. Eu teria, se não tivesse castrado meu cachorro. O outro cachorro. O Roleta morreu de velho antes mesmo de eu terminar de ficar adulto.
Agora até já deu tempo de você se formar né, aliás, já deu tempo de virar doutor, desistir, chorar e começar tudo de novo. 
Não ficaria surpreso se você tivesse largado no meio aquele curso mais-do-que-chato que você fazia e trocasse por, sei lá, aquele curso na Itália que ensina a fazer sorvete. Eu com certeza largaria, ou provavelmente nem teria coragem nem de começar. E sabe que não é nada mau um tempinho na Itália, comendo um sorvetinho, um macarrãozinho a bolognesa. Minhas bichas até ficam animadas. Ai, ai, você sempre me dando idéias, Borges. Quem sabe não abro meu boteco e dai coloco seu nome nele pra fazer homenagem.
Não sei se você ainda mora no mesmo lugar, mas de onde era, minha casa é meio longe da sua pra ir andando. Mas se você resolver dar uma chance pro seu carro, passa aqui me visitar, ou também se você quiser, que fique pra quando for que tiver que ser, não é?
Mas seria legal, eu tenho treinado, e quero saber se ainda sou capaz de te vencer na figurinha. 
Então até mais meu caro,

Joaquim B.

terça-feira, 6 de março de 2012

Plim!

E quando menos você espera, a ficha caiu.
Você está sentado com seu livro dentro do ônibus a caminho de qualquer lugar, quando a ficha redondinha do seu entendimento se atira no chão. Dois segundos muito compridos pra explicar.
Talvez dê pra ouvir o barulho surdo que faz o estômago, se contraindo, e o canto da boca que se movimenta, dependendo, para cima ou para baixo. A ruga que aparece na testa pra confirmar tudo. Os segundos de puro silêncio como em respeito ao que acabou de ser dito.
Então os diálogos mentais que se seguem pra tentar des-saber, voltar atrás, recuperar o rebolado e fazer de conta que não aconteceu nada. Pra ver se cola o tal já tava assim quando eu cheguei.
A ficha ainda rolando no chão e o tremendo elefante cor de rosa na boca do estômago. E nada mais do jeito que era antes.

segunda-feira, 5 de março de 2012

Coragem


CORAGEM é quando você pega seu monstro no pulo, escapulindo pela porta do armário e tranca a porta rapidinho, dá dez voltas de corrente, fecha com um cadeadão de respeito e ainda põe uma cadeira na frente pra garantir. E aí você esfrega as mãozinhas e comemora.
COVARDIA é quando você faz exatamente a mesma coisa, mas dá no pé e deixa pra comemorar a uns quarteirões dali.

sexta-feira, 2 de março de 2012

Na cartomante - 4


- Eu vejo você lembrando seu amor de juventude, o grande amor da sua vida. Aquele amor pelo que você lutou, gritou e amaldiçoou tanto. Quem você quase perdeu por causa da vida e depois também por causa da morte.
Eu vejo você com seu grande sonho realizado, naquele vestido que deixa magrinha e as flores que deixaram realmente tudo perfeito. 
A tão esperada família sentada à mesa esperando você terminar de trazer o jantar. 
Mas eu também vejo o que ele nunca vai ter coragem de te contar.
- Como assim, ele vai ter outra? 
- Outra sim, perspectiva. Mas não se preocupe, você vai ter tudo o que sempre quis, só vai te faltar mesmo a certeza.

quinta-feira, 1 de março de 2012

Bolsa de valores


Neguinho parece gerente de banco olhando nossa prateleira de saldos.
Se eu fosse você, investiria mais nisso.
Se eu tivesse no seu lugar, daria mais valor praquilo lá.
Ah se fosse comigo...
O que branquinho nunca viu é a gaveta dos negativos. A pasta grossa dos bocados que vem inclusos.
Se num levante de faxina, jogasse tudo quanto é gaveta pela janela lá pra rua, aí sim. 
Aí qualquer um podia fazer melhor do nosso bocado mesmo. Até a gente.

quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Cherôôso!


Eu estava segurando um pacote de sfihas quentinhas no ponto de ônibus, que cheiravam bem à pressa de chegar logo em casa.
Enquanto eu esperava, uma mulher virou pra mim com uma cafungada meio invejosa. Ofereci a ela o meu mais simpático "é né?" e dei por encerrado.
Então numa piscada longa ou alguma falha na linha do tempo, eu estava totalmente integrada aos detalhes mais sórdidos da vida daquela mulher. E eu podia jurar que só tinha passado um momentinho.
Nos trinta minutos que se seguiram, eu me tornei alguém de opinião fundamental na vida dela.
Eu, que só dei uma risadinha porque ela achou minha sfiha cheirosa, já tinha até companhia pra voltar pra casa.
Hoje em dia você corre o risco de pagar o jantar inteiro, só porque achou que devia ser mais simpática.
É, não tá fácil pra ninguém...

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

Milagre do tamanho M

No ônibus a moça estava toda faceira de roupa nova.
Autoestima costurada em malha preta e gola canoa.
Enquanto o ônibus balançava, ela alisava o cabelo com a mão e colocava (e colocava) atrás da orelha. Mesmo de costas dava pra ver que ela estava toda sorrindente. 
O caminho da autoconfiança pagando apenas uma passsagem.
E o cabelo que levava uma etiqueta M grudada então, só deixava tudo mais esnobe.

(Ai que nojo)

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Morrer bonito


Não, ela não ia se matar assim.
Escarafunchar as gavetas em busca da maior faca da cozinha e depois esfregar elas nos braços. Não, definitivamente não é este o estilo dela.
Ela não é do tipo que se mata sem antes depilar as pernas.
E duvido muito que ela se deixasse morrer com uma calcinha qualquer. Ela não correria o risco de morrer com uma calcinha meio sambada.
E antes do grand finale ela deixaria tudo em ordem, porque ela sempre diz que até pra morrer tem que ter classe.
Ela também jamais pularia de um prédio só pelo risco de chegar no chão em uma posição desprivilegiada. E descabelada, que horror.
Não, ela faria as unhas (todas as vinte), escolheria um perfume com fixador preparado pra eternidade, afinal ninguém simpatiza com defunto fedido (e Deus me livre de um nariz torcido).
Ela já deixaria encomendadas as flores na cor certa combinando com a roupa, esmalte e o corte do cabelo. Ela pensaria bem no corte de cabelo.
E quando ela enfim se decidisse, junto ao corpo ela deixaria mais instruções, telefones, possíveis roupas, sapatos e também os cílios postiços (que dão assim um tchan nos olhos fechados).
Duvido que ela aceitaria menos que isso.
Ela ia morrer do jeito bonito, ah ia sim.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

Puca puca puca

INSEGURANÇA é quando você precisa falar muito muito muito sobre um assunto pra não esquecer se é de verdade.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

Sobre a quietude das coisas


Você vem e me pergunta, e ai tá tudo bem? Tá tudo bem, eu vou dizer, porque outra resposta seria mesmo mentira. 
Mas também não é como se a vida estivesse assim animada, pertubadora, daquelas que chega abrindo a porta num frege e fazendo a ordem voar pela janela. 
Estou naquela vida que não te traz escolha a não ser ir pra frente. E que bom, vai tudo muito bem, muito obrigada. 
Mas entre os turnos alternados de comer, dormir e trabalhar, eu sinto falta. 
Sinto a falta que faz uma boa caraminhola na cabeça. 
A tal da pulga criada atrás da orelha. 
Enquanto meu pulso pulsa paciente, eu não tenho a menor intenção de esperar. 
Eu quero é ver o circo pegar fogo, chutar o pau da barraca, o balde e a calmaria toda. 
E ai sim meu amigo, quando você vier me perguntar, se abanque, que vou ter muita coisa pra contar.

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

Não expulse seu sofá de casa


Não expulse seu sofá de casa.
Pelas ruas são muitos os casos.
Um porque ficou duro, outro porque ficou molenga. 
Porque ficou velho e porque (meu deus) não fica velho nunca. 
Porque ela sonha com o sofá de pelúcia cor de rosa bem no meio da sala.
Eis como me encontro: sem braço, meio furado e sem espuma. Sem nem um cachorro pra arrancar o que ainda me resta.
Abandonado na porta de casa, onde eles entram e saem toda hora e me olham constrangidos sem nunca reconsiderar e me botar pra dentro de novo.
Sem me dar um fim mais digno do que mereceria uma poltrona que se escapole pra trás toda vez que alguém vai se sentar.
Eu que trabalhei sem descanso por vinte anos e três famílias, vinte anos e três famílias e suas bundas e também as bundas dos seus queridos parentes. 
Era eu que estava lá em todos os Natais, em todos os aniversários, em todas as brigas, eu que fiz o cachorro dormir todas as noites, e se não fosse por mim, o bonito lá ja-mais teria conseguido aqueles beijos com a Laurinha.
E no entanto sou eu que estou aqui, na sarjeta da vida. Expulso de casa como um meliante. 
Agora só me resta apodrecer de tanto desgosto. 
(adeus, mundo cruel)

sexta-feira, 6 de janeiro de 2012

Shhhh


A hora do almoço é a hora da caça. 
Dos olhos atentos, dos movimentos precisos, da determinação implacável com água na boca.
Minha planta carnívora está faminta. Meu bebê está faminto.
De régua em punho, eu aguardo. Estou esperando aquela mosca e seus cinco minutos de bobeira em cima do meu balcão.
(Vem mosquinha vem, virar almoço de plantinha)
Então eu ataco.
Talvez meus instintos predadores sanguinolentos estejam um pouco atrofiados pelos milhares e milhares anos de evolução, mas eu gosto de uma boa briga. 
Mesmo que eu tenha que brigar com uma mosca. 
Uma mosquinha só não faz verão. A família toda veio pra cá passar as férias. Um pleft bem dado e a planta agradece o bocado.
Agora shhh, que ela ta vindo.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Segredinho


Eu fiz um perfume pra ele e ele ainda usa quando vem me visitar.
Mesmo que seja só uma imitação daqueles que arrancam os olhos da sua cara antes que você possa sair da loja.
Quando chega, eu sei que é ele só pelo perfume, não preciso de mais nada pra ter certeza. Ele sabe disso também, é o nosso segredinho.
O vidrinho fica sempre guardado em um lugar estratégico dentro do carro. 
Só que agora não existe mais o carro, nem o vidrinho e nem ele.
Só o perfume quando ele vem me visitar.