quinta-feira, 16 de janeiro de 2014

De outro mundo

  NUNCA soube exatamente como era o nome dele. Sempre ouvira ele sendo chamado de dido, seja lá o que isso podia resumir de um nome ou significar de um apelido. Acho que era algum chamado carinhoso para tatatatataravô na lingua dele, que eu também não sei qual era.
Enfim, ele era meu tatatatataravô, como eu já disse. Um "tatá" (menos um nível) do meu pai. Ele morava num lugar que sempre demorava muito pra chegar, com estradas de pedra e barro e a casa dele era muito feia. E era meio fedida também. Ele era meio fedido. Eu tenho quase certeza que ele já estava meio morto quando eu o conheci, mas ninguém nunca comentou sobre o fato. Eu nunca fui com a cara dele, então também não me interessei muito em perguntar mais.
Eu não me lembro de muita coisa além disso, mas lembro muito bem de como era o cheiro ruim dele e como as unhas dos pés deles eram enormes. E como ele gritou quando a baba tentou cortar as unhas dele. Ele tava sentado na cadeira lá fora e definitivamente, ele não queria que cortassem as unhas dele. (Até porque eu acho que, ao menos que a baba usasse um machado, ela não iria conseguir).
A baba era a outra tatá, esposa do dido. Eu também não sei o nome dela. E eu também não gostava dela. Ela era um pouco malvada, baixinha demais para o meu gosto (eu era uma criança e ela era menor que eu). Ela me beliscava e queria me levar a missa. Eu fui uma fez e foi talvez a coisa mais chata que eu fiz na vida. A igreja era escura e feia e o padre não falava português. Eu era pequena demais pra sair de lá sozinha e voltar pra casa, então fiquei até o final. Quando acabou eu disse pra baba que foi a missa mais linda que já tinha ouvido. Eu não podia respeitar de verdade um casal com esse nome, afinal.
O dido me deu um mundo, um dia. Eu não tinha nenhum até o momento então peguei pra mim. Não sabia direito para o que servia, então fui morar nele só tempos depois.
Quando eu cheguei naquele mundo, tempos depois, ele ainda era novo, e era do jeito que eu queria. Eu podia inventar o que eu quisesse, quando eu quisesse, com quem eu quisesse. Era só quisesse. O tempo foi passando e eu fui ficando por lá. E fui crescendo. O mundo que ele tinha feito pra mim quando criança continuou do mesmo tamanho, mas eu fui esticado ele por um tempo e depois eu tive que ir me encolhendo pra caber dentro dele. Mas tava bom ali, era do jeito que eu conhecia, e eu conhecia cada canto do meu mundo. E quem mais tem um mundo só pra si? Eu tinha.
Eu já estava quase ficando velha quando resolvi me perguntar porque diabos eu continuava morando ali naquele mundo que o dido fez pra mim um dia. Eu nunca gostei dele. Sempre achei as coisas dele feias e fedidas. Comecei a cheirar em volta pra ver se não tinha nada fedido por perto, e pra conferir se tudo era bonitinho mesmo como eu imaginava.
Não era.
Mas mesmo as coisas feias que existiam no meu mundo, eram minhas. E até ali, era tudo o que eu possuia. Todos os meus tesouros, minhas lembranças, meus sonhos... Fui conferir as minhas caixas, onde eu guardava tudo isso e só então eu me dei conta que todas as caixas estavam amassadas. Amassadas! Meus tesouros, meus sonhos, minhas lembranças, amassadas. Então pensei óbvio, esse mundo é pequeno demais pra todos nós, mas soou menos engraçado quando eu resolvi me mudar dali. Já era hora, vish, faz tempo.
Comecei então a andar por ai, procurando saber sobre outros mundos disponíveis. Andei um bom tempo até achar algum que me prestasse. Passei por alguns um tanto ridículos, e torci o nariz logo de cara. Festa estranha com gente esquisita, já diriam, e era bem isso. Tô fora. E continuei caminhando.
Depois de caminhar por alguns anos eu encontrei um mundo totalmente em branco. Parecia que ele tinha sido esquecido, deixado ali por alguém distraído, que o deixou cair sem querer porque tava meio apressado.
Bom, serve pra mim. Fui entrando e olhando, conferindo se não tinha nada ali mesmo. Não tinha.
Então, pra não apressar as coisas, sentei ali no meio do nada e comecei a olhar pro nada, pra imaginar por onde eu começaria e principalmente, como eu queria que ele ficasse no final. E já que ali fora não tinha nada pra olhar, resolvi tentar o outro lado pra ver se eu tinha uma boa idéia. 
E quando me dei conta, estava olhando pra mim mesma, lá pra dentro, e eu finalmente soube como eu queria decorar meu mundo novo. Meu mundo novo só meu, teria exatamente a minha cara. E isso fazia todo sentido. E era maravilhoso.
E quanto mais eu me conhecia, mais bonito o lugar ficava, e mais bonita também eu ficava lá. Tudo combinava comigo, eu fazia parte de tudo e sentia finalmente que tinha encontrado meu lugar. 

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