quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Primeiro dia do resto da sua vida

Imagine que você está sentado e velho na sua cadeira favorita. Aquela cadeira que é toda sua e só sua porque você nunca deixou ninguém sentar nela, e porque só ela acomoda perfeitamente suas costas doloridas. E na sala vazia da casa também vazia, você está sentado só esperando a sua hora chegar e levar embora sua idade e sua dor nas costas. E dai o vento abre a janela, você olha e a morte está na sua frente, dando aquela risadinha horrorosa a três centímetros da sua cara. E só quando ela vai embora você entende porque  diabos ela estava rindo. A dor nas costas continuava ali. 
Ou, espere. Não está mais. Mas você começa a se sentir muito triste porque acabou de voltar do velório do seu filho mais novo (que já tava velho, é verdade), mas de alguma forma sabe que ele vai estar amanhã no hospital e piorar um pouco, mas daqui uma semana nada disso vai ter existido, porque o acidente vai ser daqui a três dias e depois ele vai estar de volta na cidade onde ele mora, e por 16 anos não vai nem pensar em vir te visitar por causa de uma briga que vocês vão ter por causa de uma bobagem que eu não tenho permissão de contar aqui.
E nesse tempo, o enterro da sua mulher, a doença ordinária que foi melhorando rápido, a convivência meio distante e a intimidade, o casamento, a escola (e principalmente as tardes depois da escola), muito tempo que passa até que vocês nem se conheçam mais. 
No pátio da casa seu pai varre as folhas, sua mãe chega apressada do mercado com seu irmão mais velho. Sua comida favorita cheira e acorda seu estômago.
Aquela bola que antigamente era velha e toda estourada e que você acabou jogando fora, agora num pacote estampado esperando embaixo da árvore o dia chegar, exatamente como você lembrava. Então você fecha os olhos pra curtir este momento e tudo fica escuro. 
E então nem você existe mais. 
E aí a história acaba, mas só a sua.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Valentine



Eu não sei o que tem de errado com ela. Quando acordo para sair pro trabalho, ela não quer sair da cama. Não vem falar comigo, não quer saber se dormi bem ou se gostaria de companhia pro café da manhã. Tudo o que ela faz é continuar coberta até as orelhas, até que eu me canse e peça pra que ela saia antes de arrumar a cama. 
Eu nunca ganho beijo de despedida. Nem tampouco de boas vindas, apesar de ela aparecer na porta toda histérica quando eu chego em casa. Acho que eu devia ficar contente só com isso. Ela também acha porque quando eu comento sobre os beijos, ela dissimula, vira pro lado e começa a roer as unhas. 
Eu odeio que ela roa as unhas. É um hábito muito deselegante. 
De vez em quando ela vem sentar ao meu lado, mas eu ainda não entendo porque ela resmunga tanto. Ela gosta de dançar na cozinha. Ela sempre me chama pra dançar enquanto estou inventando moda nas panelas. Mas se eu a chamo pra dançar na sala, ela resmunga de novo. 
A verdade é que ela resmunga bastante. Resmunga pra porta quando ela está fechada e ela quer fazer xixi (ou outra coisa). Resmunga quando ela fica com frio a noite (ou de tarde quando vem o sono da beleza) e eu estou deitada em cima das (minhas) cobertas. Ela resmunga também quando a comida não tem a cremosidade esperada.
E sobre vestidos. Ela fala muito sobre vestidos. Ela me pede vestidos a toda hora. Além de morrer de ciúmes deles. Vestidos de verão ou vestidos chiques de inverno. Ela gosta muito de ser chique, por isso mesmo que ela não deveria roer as unhas.
Se bem que quando vamos passear ela esquece completamente isso sobre vestidos e unhas. Passeio é uma coisa importante e quase sagrada, pelo jeito dela. Ela fica mais feliz quando passeia do que quando compro um vestido novo. De certo porque não tem sentido um armário lotado de vestidos, se você só vai usá-los dentro de casa. É necessário expor a beleza. Ela gosta disso. Ela sabe que é chique e bonita e quando alguém fala isso pra ela, ela dá uma voltinha pra que você olhe melhor. Depois corre pro seu colo pra que você a agrade só por ela ser tão linda.
Eu sempre digo, é uma cadela essa cadela.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Assine aqui

E se a gente soubesse o que vem depois da linha pontilhada?
O sim que vem com a assinatura
Aquela coisa em 15 vezes ou até que a morte nos separe
(Até acabar o estoque)
Se a gente pudesse saber do desenho antes de ligar os pontos
Um ponto por dia, um dia de cada vez
E se a gente pudesse ouvir uma palhinha? 
Quem sabe pedir a nossa música num guardanapo e entregar pro garçom, será que ele entregaria?
E se eu tentar uma espiadinha só no titulo da próxima página... e se tiver em branco, é porque acabou?
E se a gente soubesse onde ia dar o fim da linha, será que ainda assim a gente iria?

Será que eu fui ou foi você que voltou?

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Laços de família

Então ficamos assim, da metade pra cá você chama de primo, e a metade de lá de tio, estamos entendidas?
- Como assim, não dá pra ir ajuntando família assim, como quem cata moeda caída na calçada não, mãe.
Ara, não dá pra deixar gente sem família desse jeito. E essa montoeira de nomes aí só confunde a cabeça da gente. A verdade é que tio e prima resolve bem essa questão.
- Se você diz. Então como é que era?
Assim: da metade pra cá é tudo primo, e daí daqui-pra-lá é tudo tio, entendeu?
- Entendeu.
<------cá - sua idade - lá ------->

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Fluxograma

Eu não lembro qual foi a última vez que te vi. Quer dizer, ouvi algumas coisas a seu respeito, mas eu sei que isso não é suficiente pra saber bem certinho como está você hoje em dia.
Pois veja, como vou saber o que é verdade, se não é só picuinha a outra ter vindo me contar como você engordou. E me disseram outro dia ter visto você entrar no prédio do curso de Culinária Especial, justo você (quem diria). E também sobre seu cabelo, quer dizer, é verdade que agora você prefere usar ele todo descolorido? Eu podia jurar que tinha ouvido você dizer eu loira, jamais, tá maluca, será que estou? Agora só falta alguém vir me dizer que você também está fazendo dieta e caminhada, aí vai ser oficial, não te conheço.
Mas bem, eu anotei os pontos principais em um fluxograma, coloquei uma porcentagem de variação de verdades, e acho que consegui chegar num resultado apropriado. Não sei o que levou mais tempo, checar as verdades ou as mentiras, mas foi fácil identificar porque as mentiras eram mais detalhadas e emocionantes. Até aproveitei pra desenhar um esquema com a sua vida de mentira, só pra você se distrair depois quando tiver tempo.
O desenho ficou bem aproximado, você vai gostar do resultado, e eu também fiquei bem satisfeita com o trabalho. A verdade é que a nossa vida fica sempre mais interessante pela boca dos outros. Não é uma maravilha? E você aí achando que tava pra morrer de tédio...

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Procedimentos

Antes de começar a ler um novo livro:
- Leia com cuidado tudo o que estiver escrito por fora, especialmente as letras miúdas, por precaução;
- Abra a capa, dê uma boa cafungada na folha de rosto (e fique sempre atento as letras miúdas);
- Com cuidado, alise a primeira folha com a mão (com uma cafungada respeitosa agora) para estabelecer uma comunicação com o povoado contido ali dentro do livro (para melhores resultados, feche os olhos);
- Abaixe um pouco a cabeça pra prestar bem atenção e não perder nenhum detalhe do que eles vão falar (eles podem ser um tanto teimosos com os detalhes);
- Depois faça o Juramento Solene dos Nobres Leitores, pedindo permissão ao Povo de Dentro do Livro para entrar no mundo deles sem maiores problemas. 
- Só então caminhe para o primeiro capítulo. Lentamente porque, vai que o povoado lembre de mais alguma questão antes que você termine de abrir a porta...

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Isso aí

Sacudia com cuidado a cabeça, apertava e abria exageradamente os olhos, inspirava e soltava o ar com toda força - é, não vai adiantar - tava tudo igual.
Passou a mão por trás da cabeça, arreganhou os cabelos, fez menção de arrancar tudo num puxão (não puxou), contraiu toda a cara, sobrancelhas, bochechas e pelo que sentia podia dizer que tava contraindo também as coisas lá por dentro da cabeça.
Claro que ainda não tinha pensado em levantar, quem sabe até ajudasse pegar o celular de cima da mesinha e ver que dia era e que horas, apesar de achar que isso não faria nenhuma diferença no momento. E também, ela ali do lado só diria, mas que raios de mesinha você quer agora? naquela voz meio embolada.
Eu não queria nenhuma. Não queria nem que ela estivesse ali. Mas estava tudo ali, dolorosamente firmando sua presença. Ela, a mesinha, o celular, o dia (sabe-se lá qual) com suas horas e minha cara contraída. Eu não podia fazer nada. Não sabia onde eu estava, onde eu estou, e que dia, se é que ainda é dia.
Manter o foco, eu pensava. Eu abria de novo os olhos e nenhuma das coisas a minha frente parecia sair da forma de nuvem - Nuvem.
Nada mais de arrancar cabelos e espremer a cara. É isso. Não sei como eu cheguei, mas estou aqui. Nuvem. Agora tá tudo certo, agora eu entendi... Entendi.

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Vômito

Comecei a vomitar sem que meu corpo tivesse dado aviso de isso fosse acontecer. Abri os olhos só depois que já tinha me encostado em um canto pelo chão. Se não fosse pela roupa toda suja que servia como prova, eu não acreditaria. Se não fossem pelos dias que eu contava estar sozinha, eu duvidaria. 
Mesmo fechar os olhos de novo não estavam servindo pra mudar o que eu estava vendo. A sujeira estava toda lá, porca e fedorenta espalhada pela sala. Talvez já fizessem dias e por isso eu não lembrava. Talvez o mal estar estivesse discretamente acomodado em qualquer canto do meu corpo e não quis incomodar publicamente. Talvez, e sim talvez, aquilo nem fosse mesmo meu. As roupas duras, as lembranças partidas, o choro escorrido marcado na grossa camada poeira. 
Não, não, nada disso era meu. 
Decidido isso, encostei a cabeça e apaguei de novo.

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Muita mobilidade e pouca noção

A mulher tava falando, mas metade dos que estavam ali estavam mesmo conseguindo escutar. Não que ela tenha criado uma atmosfera anti ruído com algum objetivo malévolo envolvido para pegar desprevenidos algumas dezenas de inocentes interessados dando sopa. E também não tinha nada a ver com o volume do microfone. 
Quanto aos que não ouviam, certamente não era por estar desprovidos de suas competências auditivas, mas sim muito provavelmente das sensoriais (de senso, do bom deles, especificamente) já que não conseguiam desgrudar dedos e olhos e sabe-se-lá-mais-o-que de pequenas, médias e relativamente grandes telas brilhantes.
Enquanto ela falava, os olhos e dedos se moviam quase com vida própria na platéia, e os olhos em volta reforçavam um pouquinho do constrangimento que os respectivos lábios retorcidos demonstravam.
Mas do palco ela prosseguia, maravilhosa e inabalável, derramando dela mesma pra quem quisesse (e também pra quem não quis) ver, ouvir, perguntar e aplaudir depois. 
Quem não ouviu, aplaudiu quando acabou, mas eu tenho aqui minhas dúvidas se eles sabem mesmo porque tavam fazendo isso. Talvez porque fosse (finalmente) a hora de ir embora.

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Pé na bunda e a terapia feminina da cura

Quando ele terminou de falar e 40 segundos após o silêncio constrangedor, eu tomei coragem e perguntei que raios significava tudo aquilo.
E sem nem pensar muito ele disse que só significava que até ele esquecer tudo o que tinha acontecido, ia ser assim. Um porre. 
Que lindo. A personificação de um porre, ao vivo e a cores, sentado na minha sala, perguntando que horas saía a próxima rodada de café (aquele já tava frio mesmo). Enquanto ele olhava (e será que eu não ouvi uma coruja piando lá fora?) eu gaguejava estrategicamente, pra dar mais uma chance de entender todo aquele rolo e responder aquele coração pré-faniquito.
Antes de eu terminar de abrir a boca, ele continuou. E quanto mais ele falava, menos eu entendia.
Ele não quis explicar bem o que aconteceu e pra ser sincera também tratei de abafar as trinta primeiras perguntas. Depois de quatro horas ouvindo a mesma história podia ficar um tanto constrangedor voltar pras partes básicas da questão que eu tinha perdido.
No final da noite (e não sei como) ele já estava oficialmente morando no meu sofá. O porre era ele e pelo jeito fui eu que acabei apagando em algumas partes.
Eu como uma boa exemplar do meu gênero, tratei logo de medicar o pobre coitado com brigadeiro, uns testes de revistas e uma coreografia nova da música velha (porém inesquecível) das Spice Girls. Sempre funciona. Bom, ainda não funcionou, mas nesse caso deve ser o gênero dele que complica tudo.
Pensei também em levar ele pra visitar meu cabeleleiro no outro dia e depois quem sabe passar comprar umas roupinhas novas. Tudo pra evitar a partida em direção a prateleira de cervejas do mercado (e as outras novas 4 horas de mimimi que viriam com aquilo).
Bobagem, não ia precisar de tudo isso. Pelo jeito ele não ia sair tão cedo daquele sofá. Ele dormia agora melhor do que eu seria capaz. Solidária, desliguei a televisão, joguei uma coberta por cima dele e apaguei a luz. 
Amanhã vai ser outro dia pra você também.

sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Tá bem

Ele passou a noite no xilindró.
Aconteceu na rua qualquer coisa, ele fez que não era com ele e tratou rapidinho de carpir seu trecho.
Mas acontece que a onça que ele resolveu cutucar de vara curta era mulher. E pior, a mulher errada. Mulher do Seu Poliça.
Passou a noite no xilindró.
Então de manhã quando chegou em casa, deu de cara com a mulher e tratou logo de se explicar do grande mal entendido, que não era nada, ele só tinha enfurecido a mulher errada.
Acontece que a mulher nem quis saber como foi que o marido Dito Cujo tinha feito pra isso acontecer. E antes de conseguir se explicar direito já tava lá ele de novo, pra passar a noite no xilindró.
Dessa vez por crime reincidente, mexer com a mulher errada (que dessa vez era a que ele chamava de amor).
- Dito Cujo vai ficar bem?
- Ah vai. Só depende de bem o que... se for lascado, tá bem.